sábado, 9 de abril de 2011

Uma Rosa da Caatinga Vereda Adentro´- artesanato de caroá




ARTESANATO DE CAROÁ: UMA DAS FORMAS DE SOBREVIVÊNCIA DO POVO DO SEMI-ÁRIDO.
Quando comecei a indagar, ao pessoal nascido em Pio IX/PI, sobre suas formas de sobrevivência nos primeiros cinqüenta anos do século XX, encontrei de um extremo ao outro do município, uma atividade comum que auxiliava na renda familiar. E passei a seguir essas marcas. Foi aí que, na curva dessa vereda avistei um ‘Sobrado’, e, depois do Sobrado, o ‘Pau-ferro’.
Na localidade Pau-ferro o povo não fala, canta! Dá a impressão de que saímos de território piononense, pela estranheza lingüística do lugar, que fica a 20 km da cidade. Passei inúmeras vezes por essa estrada quando adolescente, indo estudar em Campos Sales-CE, mas nunca mantive nenhum diálogo nesse trajeto. Sempre estive ocupada demais em domar meu mau-humor provocado pela poeira que fazia redemoinho dentro daquele carro cheio de furos, e pelo desespero de ter que deixar minhas bonecas em troca de um punhado de letras incompreensíveis.
Na verdade nunca tivera diálogo com o mundo rural, embora Pio IX seja um município eminentemente rural. Com uma área de 1.948,84 Km², Pio IX apresentava, em 2000, uma população de 12.227 habitantes da zona rural, contra apenas 4.278 habitantes da zona urbana (IBGE – 2000). Com as lentes fotográficas intermediando, passei a dialogar com esse universo. E pude observar que, por todos os cantos e recantos que eu passava, sempre encontrava alguém usando um patuá de caroá - seja um pescador, seja um caçador, e principalmente o home da roça. Lembrei que na despensa do meu pai tinha um pendurado. Essa era definitivamente uma expressão entrançada na vida dos habitantes dessas paragens. Buscando descobrir onde ainda se fazia aquilo nos dias de hoje é que cheguei ao Sobrado, e a seguir ao Pau Ferro. E atenta a fala cantada daquela gente, descobri a importância dos trançados na história de sobrevivência do meu povo.
“- As trança era o pão da gente. Foi o que nos ajudou a botar comida em casa. Quem não fazia passava precisão.” (Raimunda Ana de Jesus Carvalho – Doca/ nascida em 1949).
Importância essa que se encontra amordaçada pelo preconceito, fruto da desvalorização do ofício. Nunca encontrei uma trançadeira que não vibrasse de emoção ao falar da arte. Seus filhos (filhas), no entanto, expõem uma insatisfação descabida diante do assunto. Alguns deles (as) desempregados, outros trabalhadores (as) da roça (às vezes em terras alheias). Uns poucos, funcionários da fábrica de cimento. Uma das filhas de Antônia Joana de Morais (Tuninha/64 anos/Sobrado) reclama a dureza dos espinhos do caroá que fere as mãos da sua mãe. Ninguém menciona as doenças crônicas pulmonares de caráter irreversível e progressivo que assolam os moradores daquela região, provocadas pelo amianto.
Um dia visitando a fábrica, assisti um funcionário (com salário em dia, é claro!) aparando os sacos de cimento que desciam por uma espécie de tobogam e transportando para dentro da carroceria do caminhão. O peso do saco tombava na cabeça do indivíduo e o cobria com uma nuvem cinza; senti náuseas ao assistir aquele veneno invadindo as narinas do cidadão. Eu me perguntava então, quais os ossos desse ofício que aliviam o peso dos tiradores de caroá? Não foi difícil de responder, a fábrica representa renda certa no final do mês!
“- Antigamente nós era obrigada a fazer para comprar o pão pra comer, pois não tinha outro mei de vida. A primeira chinela que eu comprei pra mim foi com um jogo de surrão que vendi por dez tões. Comprei uma roupa, um chinelo, e fui a pé passar o natal em Pio IX. Lá ainda comprei um saco de coisas e vim com ele na cabeça. Os pai num botava os fie na escola purque num pudia, então butava nós pra aprender a fazer trança.” (Doca).
Pois é, atualmente, em pleno século XXI, não se pode mais sobreviver fazendo trança de caroá! Seria um absurdo! Mas, absurdo mesmo é exterminar uma arte, que ainda aparece depois de séculos, disseminada não apenas no imaginário do nosso povo, mas latente - em focos isolados é verdade - mas bem viva, resistindo bravamente.
Caroá (Neoglaziovia varigata) - O caroá é uma planta bromeliácea, nativa do nordeste do Brasil, que produz fibras têxteis. Sem caule, com espinhos contornando as partes laterais de suas folhas. É do interior desse vegetal que se extraem as fibras das quais se faz o resistente tecido.
A luta dos caroazeiros e das tranceiras - muitos deles sem terras próprias - começa com a ida às terras alheias para colher a matéria-prima. Saltam as cercas, e com a permissão do dono arrancam os pés de caroás. Dependendo da distância lá se vão, a pé ou no lombo de um jumento com sua cangalha coberta com uma manta (de trança de caroá). E daí começa o processo de construção das trançadeiras, o qual tive a oportunidade de acompanhar em todas as suas fases. Pude observar que o caroá, na região de Pio IX é arrancado e não cortado. Procurei então me informar, e li uma pesquisa da agrônoma Joselma Maria Figueirôa, feita em Caroalina, no Sertão de Pernambuco. Através da Associação Plantas do Nordeste (APNE) a pesquisadora da ONG acompanhou, durante um mês, no período seco, e outro, no chuvoso, o desenvolvimento da planta, e identificou que o corte a dez centímetros do chão é o que apresenta maior rendimento. Aqui em Pio IX não há nenhum estudo em torno dessa planta nativa, e as poucas pessoas que a utilizam o fazem com técnicas rudimentares, desde a sua extração até o seu artesanato. E eu, que nada entendia do processo me limitei a saltar a cerca com Dona Doca. Se ninguém fuxicar ao dono da roça, posso revelar que roubamos uma melancia e nos refrescamos com a água de um córrego que tocava suavemente sua música, sem importar-se com a seca que cavalgava a passos largos em sua direção. Lembrei que a agrônoma afirmara que a melhor época para a extração do caroá é exatamente no período chuvoso. Na seca, o peso das folhas é três vezes maior, mas a coleta é mais difícil. Se tava fácil de arrancar não sei, porque não ousei apertar a mão do (no) vegetal. Segui Doquinha, que esnobava a sua capacidade de equilibrar o feixe na cabeça. Chinelamos no rumo de casa, onde várias etapas aguardavam a habilidade da trançadeira.
Depois de raspar as laterais para tirar os espinhos, os caroazeiros (as) fazem um vinco circular, com uma faca na parte de baixo da folha. Em seguida dobram, puxam a casca, e deixam só as “fitas” (as fibras). Agrupadas em molho de dez, as fitas levam cacete e são batidas até ficarem amaciadas. Indaguei sobre a danificação da fibra nesse processo, mas não obtive resposta. Já amaciadas, as fibras são estendidas e postas para secar. Devidamente secas, estão no ponto de trançar.
“- Depois que os home tirava e batia o croá, nós se juntava tudo numa casa só (tudo com fome!) e passava a noite, cada moça com um rapaz do lado (gaiato) entregando as imbira. Desse jeito nós comprava de cumer (farinha, milho e rapadura). Nós comia muito mungunzá branco e fazia fubá também. Aprendi a trançar com oito anos, com minha mãe. Os home e as muié acendia o fogo e ficava até de madrugada fazendo trança. Fazia 12 braça, oito de dia e quatro de noite." Maria Ana de Jesus (nascida em 1939/Pau Ferro).
As trançadeiras amarram as embiras em um torno da casa e começam a fazer o tecido. Cada fita de caroá dá uma média de quatro fiapos. No torno são colocadas vinte e uma pernas que vão sendo trançadas, resultando numa peça de aproximadamente nove centímetros de largura. Depois de feitas várias braças de tranças, começa a manufatura dos artigos. Feitos com uma agulha de fardo e uma faca as peças vão ganhando forma: surrões, mantas, buangas, etc.


http://www.overmundo.com.br/overblog/vereda-adentro





6 comentários:

  1. meire castelo branco10 de abril de 2011 às 19:52

    Que beleza esse texto sobre o artesanato de caroá que é, acima de tudo, um "contar a história" de nosso povo, uma forma de refletir e fazer "eco" de coisas que passam despercebidas.
    Parabéns! E pode ter certeza de que pretendo ser, daqui pra frente, uma visita constante.
    Beijo

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  2. Meire, incrível! Ontem mesmo eu tava pensando num post novo, e falei pra mim mesma: Vou mandar um convite à leitura especialmente à Meire. Acho tudo aqui a sua cara, pela sensibilidade que é a sua essência. Sua visita me fez muito feliz! Beijo!
    Namastê!

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  3. Rosa, fiquei muito feliz com a criação desse blog. Primeiro pela possibilidade que esse tipo de mídia abre, para que pessoas dos lugares mais diversos e distantes possam conhecer um pouco da Rosa e da caatinga. Infelizmente talvez, através do blog não irão conhecer a pessoa dedicada, comprometida, que se doa por completo em prol de uma causa: a educação aos menos favorecidos. E que também não abre mão que Pio IX, o nosso torrão, seja o lugar escolhido para a defesa dessa causa. Um grande beijo!!!

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  4. Luis, a tua opinião é uma consagração, pois sei que a tua leitura do mundo é vasta e teu gosto apurado, e principalmente fico grata pelo carinho. Espero que me "futuque" pra que eu não me enfade.
    Beijo!

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  5. Parabéns pelo blog e pelo trabalho em defesa da nossa cultura nordestina;da nossa história.

    Gostei muito do que vi e li,aqui;pois temos de divulgar as nossa tradições,para que as novas gerações saibam como o nosso povo é forte e lutador.

    Abraço.
    Pulo Romero.
    Meliponário Braz.

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  6. Gente vista e respeitada pelo olhar de perfumado de Rosa!
    Parabéns.

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